Outro viés (de Coisa de Doidos)

O espanto de Miro ao ser envolvido por aquele súbito abraço foi pela  grata  surpresa de ser de uma mulher. E linda. E de cabelos perfumados e, nossa, de peitos firmes que sentia pressionados junto ao sem coração que bombeava desnorteado.  Impactado, e receoso de ser uma louca, deixou-se ficar ali com ela aninhada em seus braços. Ele havia entrado na loja pelo frio cortante da rua e pelo tamanho dos quadros que lhe pareceram bom motivo para ficar sozinho com seus pensamentos, já que num rápido olhar ainda de fora da loja percebeu serem as pinturas medíocres o suficiente para não distraí-lo. E pensava, antes de se deparar com Lídia, em como havia perdido tantas oportunidades de sair da mesmice dos seus dias por pensar demais, racionalizar demais, cobrar-se demais… Na sequência destes pensamentos Lídia se atira em seus braços e começa o monólogo mais doido que ele jamais pensou ouvir. A moça lhe dizia que suas costas eram lindas, seu traseiro exitante  e os cabelos, ah os cabelos de Miro, Lídia nunca tinha visto um loiro acinzentado tão brilhante. E o bigode levemente apontados para cima causavam-lhe um frenesi. E ela dizia tudo isso para ele aos borbotões que o deixaram totalmente estonteado. E foi assim, meio fora do seu racional normal, que ele resolveu fazer o pedido que saiu de sua boca de forma independente, sem chance dele repensar. Afasta-a levemente, distanciando apenas o suficiente para olhá-la bem nos olhos e diz: Casa comigo? Bem, foi a vez de Lídia pensar que podia ser um doido. Mas em contraste com o  ser racional a sua frente, ela era impulsiva, desvairadamente impulsiva. Mas desta vez fez uma rápida avaliação da inusitada situação, do homem, do lugar e pensou  que valia o risco. Disse sim! Conversaram sobre seus gostos, problemas, solidão!!!! Olharam para o homem na poltrona junto à porta da loja e, sem saber ser o dono do lugar, pensaram que seria um ótimo padrinho de casamento mas jamais imaginaram a festa tão cheia de “amigos”… De Manolo, claro! “Amigos” que aceitaram o convite para um casamento sem nem pensarem que não conheciam os noivos.  Gente “fina , elegante e sincera” que passaram a compradores regulares quando a Galeria tornou-se um antiquário. Alguns até se fizeram verdadeiros amigos.

TRÊS VIDAS!

São exatamente 7h55min, Bento levanta-se de um salto sem despertador, por instinto. Enrola com capricho o que usa como colchão e cobertor para dormir. Lá vem Dona Maria no passo lento dos seus 60 anos. Viúva, há 15 anos conta com o auxílio de Bento para subir a porta de aço da casa lotérica que herdou do marido. Com um bom dia de um  sorriso quase sem dentes de Bento, Maria lhe entrega as chaves e ele prontamente faz sua tarefa. Desde os 15 anos morando na rua depois de ser apontado, tachado, acusado de louco em sua cidade natal, por ver espíritos, falar com espíritos, saber de coisas sobre algumas pessoas que, ingenuamente, falava para elas com o objetivo de prevenir, alertar, ajudar. Era o que pensava ser certo. Agora aos trinta anos “mora” pelas ruas de Porto Alegre. Sem drogas, quase sem dentes mas com os olhos azuis mais lindos que se possa imaginar, herdados da mãe. Uma alemã amorosa mas completamente ignorante das coisas do espírito, sobre mediunidade ostensiva, causa da suposta “loucura” de Bento. Abrem a loja, ele espera Maria lhe alcançar o café com leite e o bolo feito com carinho especialmente para ele. Começam a chegar os funcionários  e Bento se recolhe para a lateral na frente da loja, sentando-se sobre o rolo com seus pertences. É razoavelmente lúcido e faz uma espécie de segurança para a lotérica. Pela capacidade de perceber intenções já evitou mais de 20 assaltos à loja. Corre o pretendente ao assalto apenas se levantando  e indo na direção dele com seu metro e noventa de altura, também herança da mãe. Não é mais sujo porque Dona Maria exige um banho, pelo menos semanal, foi o que conseguiu negociar com Bento. E é quando troca de roupa.

Juliana acorda às 7 horas e às 7h40 sai em direção ao seu consultório no centro. Vai à pé e mesmo com o padrão de violência que a cidade apresenta, já há alguns anos, não se amedronta. Acha um absurdo não poder andar as cinco quadras que separam seu apartamento do consultório dentário. Moça do interior, estudou e formou-se em Odontologia e ficou por aqui. De segunda a sexta passa diante de Bento quando ele já está ajudando Maria a levantar a porta. Seus olhos se encontram. Algumas vezes ele lhe sorri, outras apenas olha para ela. Ela não sabe nada dele mas se penaliza do estado dos dentes. Parece que o profissional de cada área está sempre atento e focado naquilo que entende. Mas para Juliana é mais que isso. Ela não sabe explicar porque Bento lhe causa uma forte emoção. Ela pensa ser a condição de morador de rua que é a única informação que captou diante do estado escabelado, barbudo, sujo, com que ele geralmente se apresenta.  Vez ou outra percebe que tomou banho e mudou a roupa. Tem vontade de falar com a senhora que está sempre com ele mas alguma coisa a impede. Queria se oferecer para arrumar os dentes daquele homem que a emociona tanto. Quem sabe um dia!

Bento “sente” quando Juliana vai virar a esquina e encontrar seu olhar com ou sem sorriso. Sem sorriso são aqueles dias em que ele está consciente da ligação deles. Como médium tem lapsos de lembranças das vidas passadas dele e, menos frequente, de outras  pessoas também. Aquela mulher lhe causa uma profunda saudade de outra vida quando formavam um casal apaixonado na corte francesa, quando ele era um conde e ela sua adorada condessa. A dor que lhe marca a alma é por saber que ela é sua amada, e ela não reconhecê-lo faz com que não consiga sorrir. Ele sabe a causa desta encarnação tão distante da felicidade que vivenciaram naqueles tempos e se cala, sempre que tem o ímpeto de se fazer reconhecer. Ela não entenderia. Chamaria de louco! Quando o olhar vem acompanhado do sorriso é naqueles dias em que sente a atração natural de um homem por uma bela mulher, apenas. Sorri distanciado da lucidez da condição tão diferente dele, um homem de rua sem nada nem ninguém, e dela, uma mulher belíssima e de modos tão finos. Um homem sem lembranças que sorri,  sem dores na alma, sem lembrança do conde e da condessa. Mas sem ninguém, não!  Tinha Dona Maria.

Dona Maria,  sem filhos, viúva desde seus 45 anos.  Foi feliz até o dia em que o marido não acordou para seu dia a dia tão comum. Sofreu a perda do companheiro mas seguiu com a rotina de abrir a lotérica, como fazia com ele, mas agora desprovida da alegria de viver, apenas sobrepondo os dias, as semanas, os anos. Até que encontrou Bento numa manhã muito fria, enrolado em si mesmo dormindo bem no meio da porta de aço que ela tinha cada vez mais dificuldade de levantar. Abaixou-se e tocou levemente em seu ombro fazendo o rapaz acordar sobressaltado. O olhar daquele azul tão límpido fez Maria encher seus próprios olhos de lágrimas. Naquele tempo Bento não tinha paradeiro certo para dormir mas sentiu imediatamente, ao se deparar com a meiga, e triste muito triste senhora, que achara um lugar depois de quase quatro anos zanzando pelo centro de Porto Alegre. A partir daquele dia, toda manhã de segunda a sábado, Maria faz um bolo, um café com leite e leva para Bento. Ele a ajuda a abrir a loja e cuida para que trabalhassem seguros. Mas isso era antes… Ela não entendia muito bem as coisas que ele lhe dizia, na maioria das vezes. Doutras ficava muito feliz com ele. Principalmente quando  lhe falava com as palavras e trejeitos do seu amado marido. Foi a partir deste momento que começou a ler, estudar mesmo, sobre a vida e a vida depois da vida. Até que começou a entender que Bento servia de intermediário para que o marido se comunicasse com ela. Aprendeu também que devia se despedir do amado companheiro e lhe indicar que seguisse seu caminho, que entendesse que estava em outro plano, fora da matéria. Foi o que um dia fez. E nunca mais, nem ela nem Juliana, viram Bento. Tinha cumprido seu propósito. Desencarnou três dias depois, atropelado não muito longe dali,  e foi feliz planejar a próxima vida, livre para esperar por Juliana. Seu eterno amor!

NÃO CONCLUA TÃO RÁPIDO!

Cheguei na praça de alimentação do shopping bem mais cedo que de costume. Fiz meu pedido e com minha plaquinha numerada em mãos me dirigi a uma mesa livre que, como era bem antes da hora fatal para o almoço, foi fácil encontrar. Sentei-me em frente a uma mesa ocupada por mãe e filha, supus, uma vez que a acompanhante da menina estava de costas para mim. A menina, quase uma mocinha, devia estar perto dos 12 anos e acima do peso. Nossos olhos se encontraram, ela baixou os dela e continuou a comer. Fiquei observando-a a comer e, nossa, a mocinha não tinha a menor elegância no uso do talher. Segurava o garfo como uma pá que enterrava no monte formado pela refeição dela. Nos intervalos me enviava um sorriso e eu esboçava um de volta pensando: Porque a mãe não a ensinou  manusear o talher? Coisa tão simples, ainda mais para a idade da mocinha, quase debutante. Enfim, a coisa foi se repetindo, ela cravava o garfo na comida e enfiava, literalmente, o bocado na boca. Ao finalizar a mastigação e engolir, sorria para mim. Um sorriso completo onde os olhinhos participavam e os ombros chegavam a encostar nas orelhas, tamanha satisfação dela.  Era um sorriso lindo e eu não conseguia desviar meu olhar nem conter meus pensamentos de como usar um talher adequadamente. Por fim meu prato chegou. Quando ia começar a comer e, pela graça de todos os santos, me distrair da menina, elas se levantaram e eu tive um choque. A criança sofria de uma má formação nos pés, pernas, braços e mãos que faziam-na balançar o corpo todo tornando uma função tão simples, como andar, numa bizarra e complicada atividade. Para meu total destrambelhamento ela se aproximou e com o mesmo encantador sorriso, me disse: “Sabe, o senhor se parece muito, mas muito mesmo, com meu avô. Ele morreu quando eu tinha 7 anos. Hoje eu tenho 13. Ele que  me ensinou a comer assim direitinho, acertando a boca para não derramar a comida. Especialmente hoje fiz o meu melhor pois percebi que o senhor me admirava e fiquei toda orgulhosa. O senhor  parecia  meu avô feliz por me ver tão bem.” Levantei-me trêmulo, apesar de só ter 65 anos, ofereci meu melhor sorriso e me dirigi à mãe, que tranquilamente aguardava o desfecho da situação, e pedi licença para abraçar a menina. Ela assentiu e logo me vi enlaçado pelo abraço mais generoso que já havia recebido. Envergonhado pelos pensamentos que me ocorreram no inicio deste encontro, me dirigi à menina e disse: “Podes me perdoar?”. Ela sorriu e respondeu: “Sempre que estou sentada ninguém nota minhas dificuldades. Mas não posso passar a vida sentada, né? Tenho uma vida para viver.” E se foi. Ela tranquila com seus desafios e eu com muito para pensar sobre mim mesmo!

GIN TÔNICA

Ela tem, invariavelmente, um leve hálito de Gin. Isso não surpreende Lenim  que a  conheceu num agradável piquenique, num final de tarde a espera do por do sol, em meio às árvores do Parque Marinha. Todo Portalegrense conhece.  O piquenique organizado por amigos em comum , e é bom que se diga, amigos casamenteiros. Naquele dia era compreensível o hálito adocicado deste destilado à base de cereais, pois era servido em honestas xícaras de chá, de várias garrafas térmicas, uma preparação em equilíbrio perfeito de Gin  e tônica. Quem passava pelo divertido grupo pensava que se deliciavam com um saboroso chá. Lenim achou exótico mas como já tinha sido servido com uma harmonizada mistura de Rum e  café, num evento semelhante num frio de 6 graus ao relento, não se escandalizou. Ele viúvo e sem filhos, já passado dos 40 anos,  era alvo dos amigos todos emparceirados, e adeptos de que ninguém deve viver só, que buscavam achar um companheiro(a) para ele e Tianna,  e  neste dia fazer deles um par.  Buscavam “juntar” os dois. Tianna separada, dolorosamente por ter  sido traída, mas entendendo que nem todos os homens são iguais. Mulher inteligente. Ficou receptiva ao convite do encontro às cegas a partir da descrição, altamente qualificada e detalhada, da sua melhor amiga Giovanna. Gostou do Lenim. Levemente grisalho, caseiro e ávido leitor. Segundo Giovanna, alto suficiente para o metro e setenta de Tianna (que ainda gostava de sapatos salto 6, no mínimo)  nem gordo nem magro e nada pavão, ou seja, vamos no vulgar, não se”achava”. Em suma, um homem interessante que estava sozinho por opção, não que faltassem interessadas. Como diz uma música da Marisa Monte,  AINDA BEM, “…porque ninguém dava nada por mim, quem dava eu não estava a fim.. “. Tianna, uma bela e meiga criatura, merecia momentos  felizes, imprimir melhores lembranças. Deu certo. Vivem juntos há três anos. Ele sabe que o beijo dela terá , quase sempre,  um gostinho de Gim. Não, não é alcoolista, apenas aprecia a bebida. Não tem hora, não tem dia. Não precisa ser sexta-feira, nem dia de festa. Permite-se o deleite quando bem entende. Ele adora o gosto discreto e receptivo. Ele aprendeu a beber de uma garrafa térmica um drinque, originalmente servido em copo adequado (que ele sempre considerou altamente importante, adequar o tipo de bebida ao seu devido copo), em singelas xícaras de chá. Ficou determinado que assim seria. Novatos no grupo não entendem, quando recepcionados na casa de Tianna e Lenim, porque o famoso drinque é servido desta inusitada forma.

 

DE VIRADA

O pior momento foi quando descobriu que ela tinha contratado todo o aparato  para o funeral. Não o surpreendeu mas foi a  gota d’água. Playlist a seu gosto, cerimonial, flores, e até mesmo quem iria fazer o discurso de despedida. Só não teve a audácia de escrevê-lo. Seria cremado, claro. Há muito Júlio notou a indiferença dela ao seu sofrimento. Dores por todo o corpo, dificuldades e limitações se avolumando. Na última consulta, em que ela não o acompanhou, o médico deu o tempo fatal. Dois meses, quando muito. Ele estava mais magro mas no mais ninguém notava seu estado de fragilidade. Casados, sem filhos, num relacionamento normal. Dias bons, muitos sem nada, e a maioria de reclamações de toda ordem, da parte dela. Belíssima, ele sempre apaixonado. Quando Júlio descobriu a doença imaginou que teria alguma solidariedade. Mas não. Não o ajudou em nada. Já aposentados viajavam com frequência. Agora na impossibilidade dele  nada mudou para ela. Continuava com o planejado mudando apenas a parceria. Chamava uma amiga ou outra. Tinha sido um casamento de conveniência para ela, mas Júlio tinha se apaixonado no primeiro olhar. Ela percebeu o encantamento dele e planejou o enlace. Vinte e cinco anos juntos. Então! Mas aconteceu que foi Júlio quem  recebeu o telefonema, na linha do número fixo da casa, da Empresa que Sara contratou para um certo funeral. Seu funeral. A pobre menina, do outro lado da linha, passou~lhe tudo com minúcias, não desconfiando que falava com o provável defunto. A ligação era para confirmar alguns detalhes. Assim ela descreveu como seria sua despedida. Júlio ouviu tudo e finalizou a conversa pedindo que nada fosse comentado com Dona Sara, a contratante, pois ela, a atendente, teria sérios problemas se o fizesse. Ele foi bem convincente como brilhante advogado que sempre foi. Recostou-se na cadeira de couro do escritório/biblioteca e visitou mentalmente os anos passados com Sara. Percebeu o bobo que sempre fora. Sorriu e pensou na conhecida frase: Deus não joga mas fiscaliza. Respirou fundo e ligou para seu médico. Iria submeter-se ao medicamento experimental sugerido na última consulta. Enfim, tranquilo e otimista, subiu e foi tomar seu banho.E a surpresa veio, implacável.  Duas horas depois estava defronte a mesma mocinha com quem falara à tarde. Queria confirmar o serviço contratado, que descobriu estar totalmente pago por Sara. Não queria nenhuma mudança. Apenas o defunto seria outro. Enquanto tudo transcorria normal para Júlio, Sara teve um infarto fulminante enquanto pagava o vestido adquirido para o velório do marido moribundo, e teria tudo do melhor na sua despedida. Que ironia, tudo escolhido pela própria. Júlio a achou ainda bem bonita, em seu belíssimo caixão, vestida com o mais novo vestido. Hoje vive com Célia, viajando para os lugares também planejados, e pagos, por Sara. Tudo muito bem organizado. Tudo de muito bom gosto. E Célia? Ama-o.  

VOANDO POR AÍ

Laura, 45 anos, diretora de uma grande Empresa, voa com frequência em função da exigência da profissão. E nunca gostou de conversas bobas tipo como seria o voo, sobre o tempo, sobre quão chatas eram as esperas. Enfim… Conversas ocas. Então desenvolveu uma metodologia de espera para não ser incomodada. Fazia para se distrair, não tinha outras intenções. Sempre de olhos baixos lendo alguma coisa no seu iPad. Às vezes, poucas vezes,  apenas fingia ler. Pois bem, graças a este costume começava a conhecer as pessoas pelos sapatos, quando ficava entediada de olhar para a tela onde lia ou fingia ler. É, pelo sapatos. Ia levantando os olhos a partir dos pés das pessoas. Desenvolveu esta arte (Bem difícil.  Experimente!) de ir tipo escaneando, lentamente, sem saltar as partes ou ir de supetão dando de cara com a pessoa. E gostava de fazer elucubrações, a partir deste ponto de vista, (dos pés) e tirando conclusões ao percorrer cada pedaço (da pessoa).  Ria sozinha das suas conclusões. E foi sem poder conter o riso que conheceu Tiron.  Sapatênis, tamanho 42/44, homem alto, concluiu. Limpos. Caprichoso. Calça jeans quase padrão, logo não era um jovem. Garoto. Guri. Fedelho. Classificava assim todos com menos 40 anos. Coxas firmes. Uia… Óóóóó´, lamentou. Estava com uma revista no colo! Camiseta polo de cor única. Ela odiava as com listras. Mangas longas, que pena… não poderia apreciar os pelos dos braços. Mãos grandes, uma sobre a revista, outra segurando uma pequena valise de mão que estava apoiada na cadeira ao lado. Valise de couro marrom. Usada. Não velha. Voltando para as mãos. Nada de anel ou aliança. Homens usando anéis lhe causavam asco. Aliança indicava “fique longe”, se bem que os “com” eram tão ou mais disponível, não que ela buscasse qualquer deles. Laura já tinha tido vários relacionamentos. Tipo rápido, médio  e de 6 anos, que foi seu mais longo. Todos com términos  bem definidos. Com choro, sem choro, com raiva, decepção, enfim… Sofrência atual? Zerada. Mas vamos a descoberta de Tiron. Onde estava? Nas coxas…não.! Já passei das coxas. Mas estava nas mãos que dizem muito de um homem. Podia vê-las bem uma vez que os assentos da sala de embarque, daquele aeroporto, eram bem próximos.  Metro e meio de distância entre o frente a frente dos sentados. Unhas limpas e bem cortadas. A  avaliação ia tornando o homem do tipo de “bom padrão” para Laura. Ombros largos. Já havia passado pelo abdômen e gostado. Tinha uma protuberância que considerava  razoável. Homem muito sarado nessa idade lhe parecia um bobão querendo ter 18 anos. Bem, isso é coisa de cabeça de Laura. Chegou ao colarinho que tinha os dois botões abertos mostrando um pescoço sensual, sem correntinhas, o que lhe deu grande alívio. Homens de correntinha lhe pareciam afeminados, com cordões de grossos elos lhe causavam uma imediata paralisação no escaneamento e procurava outros pés.  Não era o caso. Uns pelos discretos se mostravam tímidos no pouco que via do peito.  Chegou na linha da boca e encontrou duas carreiras de lindos dentes. Sorriu para aquela boca, passou pelo nariz rapidamente e encontrou os olhos que sorriam junto com a boca e faziam ruguinhas, nos cantos, de enlouquecer qualquer uma. Os olhos dele se estreitaram e fizeram aquela expressão de quem estava sabendo o que Laura esteve fazendo, e provavelmente pensando, ao percorrer sua pessoa naqueles minutos. Ele havia acompanhado cada expressão dela e fez enorme esforço para não mover um músculo, com receio de espantá-la, ao longo do que ele também associou a um escaneamento. Mesmo quando ela chegou na altura da revista e fez um muxoxo, claramente decepcionada. Ali foi um grande teste pois pensou em pegar a revista rapidamente. Mas venceu o desafio. Passado este momento ele notou que ela começava a esboçar um sorriso que ele achou lindo, doce e sedutor. Aliás ele estava se sentindo como se ela o despisse durante o percurso do olhar  aí a razão, o anseio, de pegar a revista pois pensou que ela poderia ficar instável. A revista.  Agradeceu a firmeza do jeans. Percebeu que ela o  avaliava sem um interesse em particular, pareceu-lhe mesmo um hobby, peculiar, mas um hobby. Só que quando seus olhos se encontraram estavam ambos sorrindo. Voaram  juntos lado a lado graças a um pequeno troca troca de poltronas que ele gentilmente argumentava como ser necessário para viajar junto à esposa, o que causava um leve estranhamento, provocador de batimentos cardíacos descompensados, em Laura. Depois dessa fizeram muitas viagens juntos e ela ensinou o jogo a Tiron e começaram a apostar quem conseguia fazer a melhor avaliação. As conclusões eram discutidas e as que podiam ser corroboradas eram contabilizadas como pontos. Quem perdia ficava à mercê do que o outro lhe impingiria, à título de castigo. A falta de habilidade ou ansiedade de ir dos pés aos peitos de alguma mulher, ou se deter por tempo considerado inadequado, por Laura, nas coxas da dita cuja desencadeava uma pena pesada. Tiron também considerava falta grave quando Laura se encantava com aquele espaço entre as coxas e o abdômen, sem revistas que o preservasse.  E quem perdia tinha que pagar a “prenda”,  às vezes durante o voo… Uia!!!!

TOMADA DE DECISÃO

À mercê das tantas implicações do momento em que vivia, Adolpho não conseguia manter uma coerência no encadeamento das ideias. Ora achava que estava certo, ora pensava ser um tolo.  Não era alto nem baixo, nem musculoso nem raquítico, nem gordo nem magro, nem feio nem bonito.  Se o chamassem de feio não concordaria mas se dissessem que era bonito não acreditaria, até porque nunca tinha sido assediado como julgava serem os que são bonitos. Mas seus problemas não giravam em torno da sua aparência que não era ruim avaliando-o como um todo. Mas era inteligente, por isso a ideia de ser um tolo pouco fixava no seu pensamento. O que mais incomodava era a incerteza do que seria a melhor escolha. E se a decisão, que precisava ser tomada na manhã seguinte, o certificasse como um tolo?! E precisava ser na manhã seguinte?  Sim, pensou. Era o prazo fatal. Olhou para a mochila, jogada na poltrona do confortável quarto do hotel, aberta e com algumas poucas peças de roupas espalhadas, dobradas, usadas, amassadas que vinham sendo arremessadas ali fazia exatos seis dias. O sexto dia de tormento, de pensamentos desalinhados com seu modo de ser tão sensato.. Há seis dias Iolanda confessou que o traíra. Uma única vez ao longo dos 9 anos de casados. Nove anos em que tentaram ter um filho. Desejo escancarado dela desde quando se conheceram e que ele sabia bem ela não arredaria pé do intento. Todos os exames feitos e satisfatórios para gerar um filho. Mas nada. E há seis dias ela confessara que o tinha traído. Uma única vez. Num dia específico, com um desconhecido. Diante da confissão Adolpho olhara para a figura de Iolanda e não dissera absolutamente nada. Colocando um pouco de tudo dentro da mochila  saíra porta afora. Sem o celular, sem rumo, com a cabeça num emaranhado desconexo de ideias. E amanhã em torno de 10 horas teria que decidir. Atirou-se na cama e esperou amanhecer. A última vez que olhou o relógio eram 5:30. Não sabia se tinha dormido mas as 8 estava no banho. Escolheu a combinação de melhor aparência, dentre as opções de roupas, se vestiu e saiu. Sabia onde ir mas não o que fazer. Chegou até a sala indicada, abriu a porta e lá estava Iolanda sendo preparada para a cesária marcada para  10 horas quando em menos de 30 minutos, mais ou menos, conheceriam Laila. A tão esperada criança que agora sabia, não era, genuinamente, dele. Porque a esposa esperou até a última semana de gravidez para confessar o sórdido plano tão bem organizado em seu campo mental, e executado com precisão, que tinha alcançado o objetivo esperado?! Quando viu a carinha de Laila e seus olhos amendoados e ternos tomou a decisão. Jamais falariam sobre o dia da sua concepção. Era sua filha.